sexta-feira, 30 de março de 2012

Sementes: Tempo de Germinação e Preservação

O quadro que se segue mostra o tempo de germinação de algumas espécies hortícolas.
Atenção que isto não é dogma, pois estes valores são variáveis, dependendo de vários factores, como por exemplo:
- O estado de conservação das sementes.
- A temperatura exterior do local onde é feita a germinação.
- A temperatura do solo onde foi colocada a semente.
- Etc.
Lembrar também que caso opte por semear directamente no solo, terá de levar em conta igualmente a temperatura exterior mas, principalmente a temperatura do solo (exemplo: um bom dia de sol em Março não significa que o solo também está quente).
As sementes muitas vezes não germinam porque apodrecem no solo – tanto directamente na horta como nas bandejas de germinação.

Fontes de referência:

http://www.heirloomseeds.com/germination.html
http://www.lesbeauxjardins.com/jardinons/potager/apgraines.htm 
             Espécie
 Temperatura possível
          ( ºC )          
Dias para germinar ao ar livre
Dias para germinar em estufa
Tomate
15 a 35 ºC
7 a 9
4 a 6
Melão
15 a 28
7 a 8
5 a 6
Melancia
20 a 32
7 a 8
5 a 7
Pepino
15 a 35
6 a 8
2 a 4
Alface
5 a 28
7 a 10
3 a 5
Abóbora
15 a 28
7 a 10
6 a 8
Aboborinha
15 a 28
7 a 10
6 a 8
Batata
15 a 26


Feijão
16 a 30
6 a 8
3 a 5
Cebola
15 a 26
9 a 12
6 a 9
Ervilha
13 a 30
18 a 22
10 a 15
Beterraba
15 a 26
8 a 10
6 a 8
Alho-porro

10 a 15
8 a 10
Espinafre
13 a 30
3 a 5
2 a 4
Nabo
15 a 23
4 a 6
3 a 4
Couve-flor
15 a 23
4 a 8
3 a 4
Couve repolho
15 a 23
4 a 8
3 a 4
Couve chinesa
15 a 23
4 a 8
3 a 4
Couve de Bruxelas
13 a 30
4 a 8
3 a 4
Cenoura
10 a 30
10 a 15
5 a 8
Beringela
20 a 32
8 a 14
5 a 10
Espargo
16 a 21
20 a 20
16 a 22
Pimento
15 a 35
10 a 16
7 a 12
Pimenta
17 a 29
10 a 16
7 a 12
Rabanete
17 a 29
3 a 5
2 a 3
Alcachofra
21 a 24
15 a 30
6 a 14
Acelga
5 a 32
7 a 10
5 a 8
Rutabaga
21
4 a 8
3 a 4
Aipo
13
20 a 25
8 a 14
Salsa
17 a 29
28 a 35
16 a 22
Chicória
20
10 a 12
6 a 10
Milho doce
21
7 a 8
5 a 6













O quadro que se segue é indicativo na preservação de sementes hortícolas em local seco, pois também existe a possibilidade de conservar sementes no frio (congelar), e neste caso os anos de preservação aumenta substancialmente (10, 20, 30 anos, etc). Lembro-me de ter visto um quadro sobre a congelação de sementes, mas agora não o encontro, em todo o caso recordo-me que aconselhava uma congelação entre os 18 a 23 graus.  
A longevidade das sementes também depende do estado de conservação. Por isso é aconselhável armazenar em local seco e sem humidade. O mais apropriado é um local com menos de 8% de humidade e um pouco abaixo dos 40 graus…
Muita atenção às sementes que se recolhe! Melhor explicado: colher sementes de um fruto/legume/hortícola sempre são, maduro, de bom calibre e perfeito (dependendo da escolha pessoal de cada um, pois gostos não se discutem…na escolha que se faz, há uma grande fatia de percentagem em ter os genes do fruto igual ao que se colheu as sementes). Colher sementes de um fruto doente, mesmo que seja para salvar a espécie, é o caminho directo para mais tarde (após germinação) colher desgostos…pois tal e qual uma maçã podre numa fruteira, acaba por a doença alastrar a todas as maçãs do cesto. Para bom entendedor…
Não esquecer que a secagem das sementes também é um factor de grande importância para a sua preservação, pois uma semente que não ficou bem seca ou com humidade, dificilmente germinará, o mais certo é apodrecer.  
Não secar sementes directamente ao sol! Sempre num local à sombra e quente.
Melhor ainda é colher sementes todos os anos, assim no ano seguinte a sementeira é feita com sementes frescas.
Ter em conta algo importante: não há espécies hortícolas com taxas de germinação de 100%.

Nota: Cada Cardinal (#) representa um ano.
O esquema é de fácil entendimento, e passo a explicar: Tomando de referência o primeiro item de espécie (Tomate), onde se vê dois cardinais (# #), depois mais dois e por fim mais quatro, a leitura a fazer é a seguinte:
* As sementes de tomate têm possibilidade germinativa de 8 anos (até pode ser mais, como pode ser menos…).
* Os 2 primeiros anos após a recolha, são FORTE as possibilidades de germinação.
* No terceiro e quarto ano após a recolha das sementes, as possibilidades de germinação já são MÉDIAS.
* Entre o quinto e o oitavo ano após a colheita das sementes, as possibilidades de germinação são BAIXAS.
Depois é só seguir esta matemática nos outros itens.
ESPÉCIE
Possibilidade FORTE  de germinação
Possibilidade MÉDIA de germinação
Possibilidade BAIXA de germinação
Tomate
# #         (2 anos)
# #         (2 anos)
# # # # (4 anos)
Melão
# # # #
# # #
# # #
Melancia
####


Pepino
# # # # # #
# #
# #
Alface
###
###
###
Abóbora
###
##
#
Aboborinha



Batata



Feijão
##
##
##
Cebola
#
#
#
Ervilha
##
##
##
Beterraba
# # #
# # #
# #
Alho-porro
#
#
#
Espinafre
###
##
##
Nabo
###
##
##
Couve-flor
###
##
#
Couve repolho
##
##
#
Couve chinesa
###


Couve Bruxelas
# # #
# #
#
Cenoura
# #
# #
# # # # #
Beringela
# # # #
# # #
# #
Espargo
# # # # #
# #
#
Pimento
##
##
##
Pimenta
##


Rabanete
###
###
###
Alcachofra
# # # # # #
# #
# #
Acelga



Rutabaga
####


Aipo
####
##
###
Salsa
#


Chicória
# # # # # #
# #
# #
Milho Doce
##


Brócolos
# #
#
#









http://www.fedcoseeds.com/seeds/seed_saving.htm
http://www.saveseeds.org/library/books/veg_garden_vilmorin.html
http://www.jardinpotager.com/JocelynRoy.conservationdessemences.htm
http://www.au-potager.com/conservation.htm
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Preciso da vossa ajuda para a seguinte ocorrência:
Já desde há alguns dias atrás que, quando carrego em COMENTÁRIOS (rodapé do blog), e depois em ATOM abre-me a janela que mostra a imagem seguinte, ou seja, não consigo ter acesso aos comentários.
Eu utilizo o Mozilla Firefox como motor de pesquisa, mas se utilizar a Internet Explorer para abrir a mesma “caixa” de comentários já consigo aceder.
E isto também me acontece noutros blogs, ou seja, em certos blogs consigo ver os comentários com o Mozilla Firefox, e noutros só mesmo como no meu – Internet Explorer.
Mas que raio…se passa aqui???
Isto também acorre consigo, caro leitor?
Alguém é capaz de explicar o porquê desta situação – e como a corregir???
Agradecido pela atenção, e participação!

ahortadavo@sapo.pt


quarta-feira, 21 de março de 2012

O Melro

Porque hoje é dia mundial da poesia, e porque esta semana vi noutro blog (AQUI) um post de uma bela poesia, achei que não era descabido publicar também “nesta horta” uma cativante poesia.
Confesso que não sou muito afecto à poesia – sou mais à prosa! Talvez derivado (?) à minha iniciação… que verdade seja dita, foi muito áspera…com poemas de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) e Pablo Neruda.
Encontrei o entendimento da poesia, em primeiro lugar e acima de todos, na simplicidade e pureza dos versos de Guerra Junqueiro. Com ele aprendi que a poesia não é “chata nem um bicho-de-sete-cabeças”…pois ele transmite os sentimentos com muita limpidez.

Para quem estiver interessado em ler boa poesia, aconselho estes dois livros do autor:
O poema que apresento de Guerra Junqueiro, descobri-o aqui há uns dez a doze anos atrás; e achei-o tão eloquente e sublime que merece destaque neste dia em honra dos poetas.
O poema não é livro, pois encontra-se inserido entre outros poemas no livro “A Velhice do Padre Eterno” (este livro é uma sátira à religião...mas salva-se o poema do Melro)
E porque não o melro (?), essa avezinha tão eloquente na arte da poesia, do canto em serenata e da oração.
Dá gosto de ouvi-lo logo após o amanhecer (Primavera e no Verão), a plenos pulmões, acordar toda a vizinhança, em cantos de louvar e graças aos Céus, pelo dia de paixão que tem pela frente.
E ao final do dia, é um regalo escutar a sua oração mais melancólica, num tom suave e cansado, de uma jornada plena de graças…
Nota:
Aviso já - este poema é belo mas também é trágico. Portanto, quem for muito susceptível é melhor ter uns lenços à mão…
O MELRO

          O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
          Madrugador, jovial;
          Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
          Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
          O melro; dentre a horta,
          Dizia-lhe: "Bons dias!"
          E o velho padre-cura
não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
          Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
          Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
          Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
          Até que ultimamente
          O velho disse um dia:

"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
          Dá cabo dos trigais!
          Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"

          E o melro entretanto,
          Honesto como um santo,
          Mal vinha no oriente
          A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto, o rude proletário,
          O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

          Foi para a eira o trigo;
          E, armando uns espantalhos,
          Disse o abade consigo:
"Acabaram-se as penas e os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito espanto!
          O abade, inda na cama,
Ouvindo do melro o costumado canto,
          Ficou ardendo em chama;
          Pega na caçadeira,
          Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!

          Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo;
          Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura
(Muito embora o leitor não me acredite),
          Que o bom do padre-cura
          Perdera  o apetite!

Andando no quintal, um certo dia,
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!,
          Que ditoso momento!)
Um ninho com quatro melros, escondido
          Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

"A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era minha sementeira:
          Era o pão, e era o milho;
          Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"

E, engaiolando os pobres passaritos,
          Soltava exclamações:
          "É uma praga. Malditos!
Dão me cabo de tudo esses ladrões!
Raios os partam! Andai lá que enfim"

E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
          Fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
          Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
          A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda douradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
          Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
          Os rebanhos e as flores,
          As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura,
Destacava na frouxa claridade,
          Como uma nódoa escura.
E, introduzindo a chave no portal,
          Murmurou entre dentes:

          "Tal e qual tal e qual!
Guisados com arroz são excelentes."

Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
          Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir falar estas falas silenciosas
          Dos mundos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras,
Pressentiam-se quase a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar.

E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito acetinado e brando.
          Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma flecha; e, louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho,
Todo tremente, murmurou então:

"Foi aquele homem negro. Quando veio,
Chamei, chamei Andavas tu na horta
Ai que susto, que susto!, ele é tão feio!
Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
          Num bonito lugar
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
          Para voar, voar!"

         E o melro alucinado
          Clamou:

                         "Senhor! senhor!
É porventura crime ou é pecado
          Que eu tenha muito amor
          A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
          Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
          Quanta noite perdida
          Nem eu sei...
          E tudo, tudo em vão!
          Filhos da minha vida
          Filhos do coração!!!
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o Céu par voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!
          Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa
          Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! Quase à noitinha
          Parti, deixei-os sós
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
          De mais ninguém! Que atroz!
          E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar
Remorso eterno! eterno pesadelo!

Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera
          Ser abutre ou fera
Para partir o cárcere maldito!
E como a noite é límpida e formosa!
          Nem um ai, nem um grito
Que noite triste!, oh, noite silenciosa!"

E a natureza fresca, omnipotente,
          Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
          Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
          Cantavam rouxinóis.

         Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A lua triste, a Lua merencória,
          Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
          Branca como a harmonia,
          Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons das flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
          O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora o Nazareno
          Na noite do calvário!

Segundo o seu costume habitual,
          Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.
          Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
          Tratava da hortaliça
E rezava a Deus-Padre Omnipotente
          Vários trechos latinos,
Salvando desta forma, juntamente,
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

                                "Olé!
          Dormiram bem? Estimo
          Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do Diabo,
Julgam que isto que era só dar cabo
          Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!
Grandes larápios! Era o que faltava
          Vocês irem ao milho,
          E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhas naturais de um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé! Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!
          E então a Fortunata
Que tem um dedo e jeito para isso!
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
          Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!"

Mas nisto o padre-cura, titubeante,
          Quase desfalecendo,
Atónito de horror, parou diante
          Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,
          Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
          Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
          Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
          E alucinado, exangue,
          Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco,
          Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno,
Disse:
          "Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa mas a alma voa
Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" -

E mais sublime do que Cristo, quando
Morreu na Cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade, lívido d'espanto,
          Exclamou afinal:
"Tudo o que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d'almas o universo todo.
Tudo que o vive ri e canta e chora
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
          Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura! 
*
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"

E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo,
          Nos abismos sem fundo
Do temeroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou A Igreja, a Crença,
Rude montanha, pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta séculos d'altura;
O Himalaia de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes,
Entre raios e nuvens trovejantes,
Lá dos confins sidérios do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
          Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha trémula, a expirar!
 *
 E, arremessando a Bíblia, o velho abade
Murmurou:
                "Há mais fé e há mais verdade,
          Há mais Deus concerteza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza,
A única Bíblia verdadeira és tu!..."

Guerra Junqueiro
«O facto em que se baseia este poemeto, conquanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.
Os melros e algumas outras aves, como os pintassilgos e os rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes, (sarcasmo trágico, crueldade sublime!) deixando-os vivos, arrancam-lhes a língua!
Ora, nem todos os melros, pintassilgos e rouxinóis assassinam os filhos, quando lhos prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heróicos. O que demonstra que a acção é livre e responsável, e não um simples produto duma fatalidade orgânica.
É pena que Michelet ignorasse este facto. Que páginas divinas que ele não teria escrito! “L´Oiseau” ficou incompleto.»

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Não sou nenhum espert em matéria de ornitologia, apenas um simples conhecedor de jardim.
Isto para dizer que, tenho para mim que os melros são um tanto ao quanto fugazes e desconfiados mas, quando estão em plena temporada de criação são os "antípodas" da descrição que acabei de fazer, ou seja: são destemidos e sem vergonha, até quase que lhes chamaria provocatórios... Mas tudo, claro está, em sacrifício pelos filhotes.
(Admiro a personalidade desta ave!)
É verdade que ainda estamos em Março mas, com este tempo tão anormal e quente, é bem possível que já haja namoricos consumados...
 Imagens retiradas da Internet.